domingo, 5 de julho de 2009

Uma estoria de amor


Edvard Munch- Puberty
" Ve meu amor, ve como por medo ja estou organizando, ve como ainda nao consigo mexer nesses elementos primarios do laboratorio sem logo querer organizar a esperanca. Eh que por enquanto a metamorfose de mim em mim mesma nao faz nenhum sentido. Eh uma metamorfose em que perco tudo o que eu tinha, e o que eu tinha era eu- so tenho o que sou. E agora o que sou? Sou: estar de pe diante de um susto. Sou: o que vi. Nao entendo e tenho medo de entender, o material do mundo me assusta, com seus planetas e baratas.
Eu, que antes vivera de palavras de caridade ou orgulho ou de qulquer coisa. Mas que o abismo entre a palavra e o que ela tentava, que o abismo entre a palavra amor e o amor nao tem sequer sentido humano- porque- porque o amor eh materia viva. Amor eh materia viva?
O que foi que me sucedeu ontem? e agora? Estou confusa, atravessei desertos e desertos, mas fiquei presa sob algum detalhe? como debaixo de uma rocha.
Nao, espera, espera: com alivio tenho que lembrar que desde ontem ja sai daquele quarto, eu ja sai, estou livre! e ainda tenho chance de recuperacao. Se eu quiser.
Mas quero?
Clarisse Lispector - trecho "A paixao segundo G.H."


Magnólia era menina bondosa vinda de uma família do interior. Ela estava na cidade grande há muito tempo, logo já era quase uma pomba urbana. Não se acostumava com a superficialidade da multidão enlouquecida da metrópole: pessoas que bebem demais, que comem demais, que trepam demais, que fazem muito de tudo e sempre rapido. Ela queria o seu vazio interno. Entretanto, algo intrigante ocorria: não conseguia a não ação. Quero dizer, não a conseguia ao lado do João.
João era homem nascido na cidade grande. Estudioso, vivia de sua vida acadêmica. Tinha um complexo de Don Juan. Mas, achava-se curado. Henry Miller ele seria, só se fosse na vida passada. Agora ele queria ser João marido de alguma Maria. Magnólia achou-se Maria. E ainda foi mais longe: achou-se a Maria de João. Planejou tudo : o casamento na igreja, os filhos , os livros que escreveriam juntos, o fim da vida olhando o bucólico verde dos campos. Criou um futuro, descompassadamente, ao ver um espírito que achava semelhante ao seu. Narcisismo? O fato é que Magnólia acabou por amar Joao. Ele flertou a estudante interiorana por pouco tempo. Logo enjoou-se, negando a garota. Era assim com todas as garotas que se envolvia. Na verdade nunca se envolvia, só sabia viver de ficção. Mas, Magnolia terminou a faculdade e continuava a amar o professor. Ela acreditava que ele a via e a desejava. Ele saia com pretas, brancas, flertava mulatas, comia amarelas. Ela não deixava de amar João e só sofrimento pausava em suas pupilas. Mas, ao ver João tudo se tornava alegria. Amava e amava.
Será que o amor era doença de Magnólia? Cheia de vida e criatividade fazia uso do Prozac para não ter intensidade demais. Aumentava a dose e aumentava e nada de parar de chorar. Dor profunda de alma nao se cura com remédio. Terapia não adianta nada antes de seis meses. Entretanto, a ingênua Magnólia poderia jurar que estava curada pelo amor que sentia pelo João. Um amor sem fim e sem começo. A garota amava com uma intensidade que só funcionaria no teatro ou no cinema. Na vida intensidade demais atrapalha, como todos já deveriam saber.
Tempos se passaram e a menina ainda conservava o amor pelo homem que não chegava. Aliás, Joao estivera ali por inteiro em algum momento? Era uma especie de ritual que ela vivia diariamente: ela sentava-se na praça e trazia consigo uma marmita quente e saborosa. E esperava João sentada no banco público em frente a sua casa: um dia veria o seu amado e o alimentaria.
Ele nao veio ou ela não o viu. Outros frequentadores da praça vieram com fome da marmita, do amor de Magnólia. Ela preferia jogar a comida para as pombas que entregá-la a outro! A menina era de uma fidelidade canina.
Depois de tanta terapia e profundo aprendizado, descobriu que não era o João que importava. O que estava acontecendo era uma projeção. Isso mesmo! Joao era tudo o que ela aprendera que era bom. Principalmente pelo fator de nÃo ama-la. Será?
Negada, dia apos dia, ela se fortalecia. Já não chorava e até sorria. Não esperava João. Algo interior com imagem de pra sempre, comecava a ser mudado dentro de Magnólia. Argila interna moldada pelos dias era a pessoa da rapariga no presente momento da estória. Todavia algo se prolongava e se repetia: na praca como cadela vira lata, tremendo de amor, esperava seu dono: JoÃo.
Um certo dia João aparece. No meio de tantos Josés que ela reconhecia, só João brilhava . Era ele. Ela tremia com frio interno. Tinha um êxtase e uma dor no peito aguda. Uma ansiedade vinda da paciência de esperá-lo por tanto tempo. Mas, não tinha ela dito a si mesma que nào esperava mais João? Uma contradicao inexplicável. Esse dia, ela estava na praça sem marmita, sem nada. E ele apareceu, olhou para a garota e disse: oi. Era o melhor e o pior dos dias da vida de Magnólia. Eles conversaram e tudo estava bem. Até o momento da despedida. Ela nào queria dar adeus a Joào. Denovo nào! Queria agarrá-lo e segurá-lo pra sempre. Mal sabia a garota que nada é pra sempre. Em uma tentativa desesperada pede um beijo ao rapaz. Ele recusa um beijo seu. Era tudo tao fantástico, que Magnólia nao conseguia nem ficar centrada em suas pernas. Parecia que havia saboreado um docinho licérgico. Tudo ganhava dimensÕes diferentes e ela chorava por dentro. Chorava por: toda a espera, toda a projeção, toda a carência, toda a astúcia, toda a dedicação, todo o carinho, toda a fé, todo o amor. Ela tinha caído no engano da impulsividade pedindo um beijo. Se identificava com o amor por João tanto e tão profundamente que não conseguia mais observar a si mesma e nem o outro era possível ver . Ridícula e caída em suas desilusões Magnólia estava congelada no frio da ausência da boca do amado. Ele iria embora. E ela pensava: eu te amo, te amo, te amo. Mas, esse eu te amo não saiu da garganta de Magnolia. Não dessa ultima vez.
Essa merda de remédio não faz efeito ?- pensava Magnólia perdida em sua avalanche de emoções. Ela não sabia se chorava, se ria, se gritava, se ouvia ou se falava. O que precisava Magnólia era ficar parada. Ela sabia viver na não ação, mas nÃo perto de JoÃo. Com ele era pernas pelas mÃos. Era paixÃo nÃo descártavel. Era amor incurável. Magnólia menina tão crescida, quando via JoÃo, era menina de cinco anos de idade . Tudo bem infantil , ingênuo sentimento sem proporçÕes. JoÃo silencioso olhava assustado o show amoroso de Magnólia. Ele pensava em outras coisas, em muitas coisas que nada tinham com Magnólia. Aliás, ele nem iria na praça pública aquele sábado, foi só um acaso. Ele só pensava em ir embora.
Ela se aproximou de JoÃo e sem ouvi-lo beijou sua boca que a rejeitava. Sentiu o cheiro da realidade e dopada de verdade foi afastada pelas mãos de João. O amor era incurável, mas a vida continuava. Era preciso saber que não tem explicação essas coisas de coração. João se foi decepcionado e ate um pouco irritado pela invasão amorosa de Magnólia. E ela ficou parada no banco público, estagnada em intervalo amoroso. Chorou como nunca, tirou uma parte de seu coração e enterrou embaixo da árvore em frente ao banco . Enterrou um sangue vermelho dentro da terra marrom e lá tempos depois brotou uma flor. O amor de Magnólia por João transcendeu no universo: de sangue a flor. Magnólia operou a si mesma . Doeu muito por dentro, todavia o amor deu bom cheiro e beleza a praça pública, em frente a casa de JoÃo. Se pudessemos perguntariamos a Proust: o amor nÃo é operavel de fato?
Magnólia, desde entÃo, mudou-se e nunca mais viu Joào. Esse envelheceu solitário e passou a frequentar o banco na praça que Magnólia ficava. JoÃo gostava do cheiro de “dama da noite . Passou a conversar com a flor ate os seus dias de morte. NÃo se sabe o que JoÃo dizia a “dama da noite”, nem tampouco sabemos o fim de Magnolia.

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