terça-feira, 13 de outubro de 2009

Conto "O Anjo"



Marc Chagall
O Anjo




O barulho da moto era inconfundível. Uma Harley- Davidson. Só podia ser ele, meu amigo Vitor, que de certo viera me vistar, tomar uma cerveja e com certeza apreciar o cemitério. Moro próximo a um grande cemitério, onde o avô de Vitor esculpiu uma linda capela feita de anjos celestiais de mármore. Ás vezes o cemitério é florido, chega parecer um privilégio morar perto de tão silencioso jardim.
Confesso que nunca me identifiquei com cemitério e afins, até presenciar os acontecimentos da vida de Vitor. Ele sempre será um amigo especial , o irmão que não tive. Para muitos de nossa convivência tínhamos estranhas semelhanças, quero dizer a nossa cabeça parecia ser do mesmo santo, e ainda o que era mais incrível para nossos amigos de ginásio é que tínhamos o mesmo nome. Meu primeiro nome também é Vitor, apesar de muitos me chamarem de Neto por ser um nome herdado do meu avô.
O fato é que Vitor marcou minha vida. Ainda me lembro do nosso otimismo estudioso. Organizávamos uma revista chamada “Ensaios sobre Pintura & Escultura”, patrocinada pelo pai de Vitor, um grande empresário diga-se de passagem. Essa revista era um orgulho para mim, popular no meio universitário, chegou até a circular em alguns museus e centros culturais. Entretanto, não durou muito nosso idealismo juvenil, não entendíamos de marketing e o retorno financeiro era cada vez mais escasso. Cairíamos no mundo dos leões e sabíamos que não tardaria o dia em que seríamos devorados. Foi o que aconteceu no último ano do colégio.
Eu continuei com a pintura e a escultura, e hoje tenho um ateliê. Vitor decidiu aprofundar-se na arte da ciência, foi estudar medicina. O médico pra mim é o maior artista do corpo humano. Infelizmente, eu sempre fui alérgico a formol, benzina e cheguei a sentir náuseas quando fui obrigado a presenciar a hemorragia de uma tia. Já Vitor era um artista-cientista.
Ele ficou na cidade grande, para mim muito mais cinza que o meu vizinho cemitério. Sem falar no trânsito, horário de pico e o diabo a quatro. Lá na metrópole Vitor se aprofundou nos estudos e casou-se com Julie. Menina linda, pele branca e cabelos negros e longos. O danado do meu amigo tinha sorte ou pelo menos nunca teve azar com as mulheres.
Vitor sumiu por um bom tempo. E depois de cinco anos ouço o barulho da sua moto? O cão late. Alucino na idéia de que só pode ser Vitor. O barulho era de sua moto.
O sol estava em um alaranjado, quase vermelho aquele fim de tarde. Em bairro considerado distante como o que moro é permitido ter ruas de terra. A avermelhada poeira dança no ar. Saio no portão principal e Vitor cheio de poeira vermelha estava ali, veio me visitar. Não pode ser! Olhei, achei mais magro. Mas, era ele: Vitor. Os olhos de meu amigo estavam esbugalhados e enigmáticos. Sem demora convidei-o para entrar.
Nos abraçamos e senti que algo não ia bem. Apesar de tímido Vitor sempre foi o mais animado da turma. Desta vez ele não estava trazendo nenhuma garrafa de vodca. Nenhuma piadinha de mal gosto na entrada? Aquilo tudo era um mistério pra mim. Então ele se afundou na poltrona de veludo vermelho e disse:
- Meu irmão, eu preciso usar seu ateliê por um tempo.
Olhei para ele desconfiado. Usar meu ateliê para o quê? Ele acendeu uma cigarrilha importada; porém a mão parecia doente perto da cigarrilha,tremia e estava imunda.
- Neto, você sabia de meu amor por Julie?
Hesitei por um instante, os olhos de Vitor estavam parados, estáticos. É como se saltassem da poltrona vermelha que ele estava afundado. Assustado balbuciei que sim.
- Julie morreu.
Não sei porque mas minha reação foi um espirro. Na verdade, foi uma crise alérgica, uma defesa física, um tipo de premunição orgânica.
Então Vitor me contou em detalhes a vida dele com Julie, a morte de sua amada e os seus desejos, quero dizer a obsessão que tomava conta de seu futuro.
Julie havia morrido em um acidente de moto. E eu sabia que Vitor era apaixonado por motos. As motos nos dão a sensação de aventura. Os casais parecem mais sensuais em cima das motos: agarrados, com o vento fazendo festa pelo corpo, os lábios gelados como quem tomou sorvete, as imagens passando agitadas. Todas as semanas ele levava Julie passear de moto. Sem nenhum compromisso, só passear. Ele quase sempre passava na portaria de algum cemitério, parava a moto e os dois ficavam em silêncio. O silêncio ali era respeito, amor. Era o barulho das folhas caindo, o ar cinza e vermelho do cemitério.


Julie que desde garota sonhava com o príncipe encantado, estava ali passeando no cemitério com seu príncipe magro e um tanto disforme. Maldade, para Julie ele era inteligente, gostoso, e além de tudo ela achava que aquele óculos dele era um charme, ela sentia tesão por seu ar de intelectual. Tanto tesão, amor, que ela adquiriu o hábito de passear no cemitério, sentia uma feliz nostalgia. Lá o verde era bucólico porque era quase cinza, quase feito de cinzas e rosas vermelhas.
Eles estavam habituados ao passeio semanal. Vitor sentia a tranqüilidade viva e escrevia e respirava livremente. Ele não suportava o parque do Ibirapuera aos domingos, era congestionado, um passeio condicionado a padrões sociais. Mas, no cemitério havia esculturas lindíssimas, e ainda podia fazer amor nos vales mais escondidos.
Uma noite foi especial, Vitor disse:
- Eu vou te levar em um lugar maravilhoso. Quero que você vá de olhos fechados. Vou te levar para conhecer um delírio que eu chamo de “O anjo”.
Julie caminhava no escuro. Quando abriu os olhos “O anjo” tomou proporções inacreditáveis. Era o mais lindo que já havia visto, delicado e forte como só as belas esculturas podem ser. Tinha as mãos delicadamente pousada entre as pernas, era prateado e reluzia como um holofote. A estrondosa beleza arrancava lágrimas de Julie. Ela estava consumida pela imagem, o frio percorria sua coluna como um presságio, um calafrio. Os olhos de Julie percorriam cada milímetro do Anjo. Havia uma legenda: “Artistas Indigentes”. Um novo arrepio na coluna. Quis sair dali imediatamente, porém não se moveu. Sentia um misto de dor e tesão. Ela queria ser amada naquele momento mais do que nunca.
Julie tirou a calcinha, encostou no muro do cemitério e disse sussurrando para Vitor:
- Você vai me amar para sempre?
Ele se sentiu um fatalista, mas aquela mulher era tudo. Gaguejou e disse:
- Para sempre.
As mãos dela desceram do peito para a barriga, fez festa no umbigo, desceu para o seu sexo e pediu:
- Me ama aqui no muro do cemitério?
Vitor sentiu o seu membro maior do que nunca. Ele foi levantando a saia dela. As mãos dele foram subindo passeando pelas coxas bem torneadas, pouco a pouco o corpo dele foi ocupando todos os espaços do corpo dela. Ela gemia e via o anjo. No muro do cemitério gozaram múltiplas vezes. Gozaram o amor eterno. Julie sentia um líquido quente escorrendo pelas suas pernas. Eles sentiam amor verdadeiro.
Ficaram muito tempo sem palavras. Viviam um silêncio magnífico onde não julgavam nada, só dançavam aquele momento numa dança interior sem fim. Depois de muito tempo Julie salta mansa e ágil como um gato subindo no muro. A imagem dela é como a de um totem: cabelos esvoaçantes, coxas meladas do mel mais puro que possa existir, a boca recheada da saliva de Vitor. Julie confessa como se nunca houvesse dito isso:
- Eu te amo Vitor!
Ele abraça Julie, um abraço tão forte que ele chega a sentir o coração dela pulsando em seu peito. Vitor percebe que as horas se passaram rapidamente e diz:
- Já está tarde, vamos embora.
Caminham de mãos dadas. Vitor pensa que é gostoso sentir a mão de Julie. E só de pensar que na adolescência ele achava careta andar de mãos dadas! Ah! Hoje é como se ele estivesse tocando a buceta dela. Como ele pudesse sentir a alma dela emanando naquele contato entre duas mãos. Nesse encontro de mãos era possível sentir a arte do amor presente no corpo humano, na casa do espírito.
Subiram na moto e quando saíram do cemitério Julie balbuciou no seu ouvido:
- Quando eu morrer eu quero uma escultura dessas- apontou o anjo que se via já muito longe. Uma escultura linda no meu túmulo!
Os cabelos longos de Julie voavam. Vitor apreciava pelo espelho da moto aquela boca carnuda, aqueles cabelos em festa, as mãos dela pousadas em sua virilha, as imagens atropelando-se na velocidade da moto. Ele se via tomado de um enorme tesão. Apesar do barulho da moto ele podia ouvir Julie repetindo quase feliz:
- Eu quero uma escultura, uma linda escultura como aquela dos “Artistas Indigentes”
Se Vitor pudesse reter a vida! Ele descobriria uma infinidade de planetas habitáveis e caminharia por todos eles de mãos dadas com Julie. Vitor ria dos seus próprios pensamentos. Ele, o eterno viajante solitário. Ele que mesmo sem querer visualizava tragédias, que já havia estudado o processo de putrefação. Logo ele que havia se julgado ateu, agora queria eternizar a vida!
Um mês depois, os dois tinham ido passar o final de semana em um sítio que era relativamente próximo de onde moravam. No caminho de volta, havia uma mancha de óleo na estrada. Julie se desprendeu da moto. Essa maldita mania de andar sem capacete! Tudo bem que era uma estrada conhecida, mas porque essa mania de achar que só com a gente não acontece?
Julie viu tudo lentamente. Sempre havia achado que as imagens sob a moto se movimentavam rapidamente, agora elas eram paradas. Ela sentiu a pancada na cabeça, e o corpo foi adormecendo pouco a pouco. Era evidente que Vitor não tinha culpa. Ele desesperado, gelado de pânico não poderia estar enganado, Julie tivera morte instantânea.
Desespero e escuridão. Ele passou a viver quase sem comer, sem falar, sem respirar. Em suma, passou a viver quase sem viver.
Vitor passou então a dormir sozinho na cama de casal que tinha o cheiro de Julie. Ele abraçava o babydoll de Julie todas as noites para dormir tranquilo. Uma noite, ás quatro da manhã, Vitor acorda suado e dentro de sua cabeça ecoa:
- Uma estátua mais bonita que a dos artistas indigentes. Uma estátua...
Ele se levanta em um só golpe e sai de casa sem ligar a moto para não fazer barulho. Na esquina, liga a moto decidido: cemitério. Durante o caminho conversa sozinho:
- Pensa que eu vou dar uma estátua pra Julie? Vou dar uma coleção de estátuas, construir um ateliê de esculturas só pra ela.
As mortas merecem amor. Vitor está decidido que Julie não passa mais uma noite sozinha no cemitério, ainda mais sem o desejado presente, a estátua.
Vitor queria ninar Julie, fazer cafuné, presenteá-la com as mais ricas jóias e especiarias. E porque não realizar também o seu desejo oculto? Estava certo que iria eternizar Julie para que eles pudessem continuar concretamente se amando. Ele deixa o perverso pensamento escapar como um sussurro entre os dentes:
- Vou embalsamá-la.
Passa uma sequência de árvores, o silêncio e a coruja. Vitor chega ao cemitério. Andando com passos largos e livres, procura o coveiro. Encontra o homem das tumbas adormecido na sepultura de uma japonesa. Olha aos arredores, há resíduos de festa. Vitor apanha um brigadeiro perdido no chão e o coloca próximo a imagem da morta. Vem á sua lembrança uma festa que havia ido quando tinha dez anos, uma festa com muitas comidas e bebidas. Foi exatamente com dez anos e seis meses que ele perdera a colega de colégio chamada Mariana. E que colega! Era a oriental mais linda que já havia visto, seu membro chega a fazer uma menção involuntária. Ah! No dia do cortejo Vitor queria morrer para ter uma festa igual aquela e poder deitar-se ao lado daquela menina de cabelos lisos e pretos. Menina tão magra que mal podia se ver os seios, existia uma ingenuidade em Mariana de comover a alma. Foi ela quem incentivou Vitor passear no cemitério, doce lembrança.
Vitor ouve o ronco do coveiro, volta a realidade e percebe que precisava agir naquele momento. O coveiro com uma garrafa de Fogo Paulista na mão, ele, e só ele poderia ajudá-lo naquele momento. Decidido Vitor tenta acordá-lo:
- Ei, ei o senhor pode me ajudar?
Nenhuma resposta. Vitor cutuca o ombro do coveiro, e nada, o homem dorme como uma pedra. Então ele resolve se aproximar da orelha do homem e falou com vigor e intensidade que ecoaram no cemitério:
- Ei, ei, eeii! O senhor pode me ajudar? Acorda!
- Ahmmmmmm!
O coveiro produzia uns grunhidos. De repente sai do vão entre o pé do coveiro e a tumba uma barata voadora de uns cinco centímetros. Seria real? Vitor tinha um sincero pavor de baratas. Ele, então gritou:
- Ei me senhor tá difícil de acordar não é? Então vou levar essa garrafa pra mim de presente!
Quando vai pegar a garrafa o coveiro em um sobressalto se levanta e diz:
- Malandro que é malandro não atravessa tumba alheia, quero dizer não interfere nos bens, quero dizer no sono, quero dizer... Mas afinal o que é que você quer? Desembucha rapaz, quer roubar dentes é? Os dentes de ouro estão em falta, parece que ninguém mais quer gastar com dentista.
O coveiro explode em uma gargalhada. Vitor sem entender é tomado de um enjôo sem tamanho quando vê a barata pousada no bico da garrafa do coveiro, mas engole a azia e tenta explicar:
- Meu senhor, eu venho trazendo uma boa quantia em dinheiro e o que eu quero é o corpo de uma morta, mas ninguém, ninguém compreende? Ninguém pode ficar sabendo, talvez o corpo de algum indigente deva ir para o caixão.
- Ai meu irmão, quanto morre? Quanto é que é hein? Cem reais já vou adiantar que não aceito!
Vitor retruca rapidamente:
- Dois mil reais.
O coveiro cambaleia. Para quem ganha um salário mínimo por mês, e só come brigadeiro em festa de cemitério a proposta de Vitor era um sonho.
- O quê? Dois mil reais? Pode levar até dois se quiser. E não é que carne podre vale dinheiro? Eu... Eu nem sei direito o quanto é dois mil reais...
Vitor se lembra de Nelson Rodrigues, a frase de Otto que diz que o mineiro só é solidário no câncer. Era horrível para Vitor a idéia do suborno, mas o amor, a voz de Julie ecoando em sua cabeça o faziam não hesitar. Sentia uma forte náusea ainda causada pela barata, a cabeça ecoando: “Se você me ama me dá uma estátua”.



O coveiro demoraria dois dia para realizar o serviço em sigilo, tempo suficiente para ele decidir onde levaria Julie. Então Vitor chega a minha casa, ele, meu melhor amigo, com os olhos esbugalhados, cheio de poeira vermelha.
Agora eu me sentia uma testemunha, poderia ser um erro, mas eu estava decidido a ajudá-lo no que fosse possível. Já havia entendido o porquê do pedido do ateliê, e sabia que o galpão dos fundos seria perfeito, pois era grande, inutilizado e isolado das dependências da casa.
Entretanto uma questão continuava a me intrigar, como Vitor traria o corpo de Julie para cá? Me parecia inverossímil o corpo de uma morta em cima de uma moto, não resisti e ironizei:
- Mas Julie não ficaria bem no bagageiro da sua moto com aquelas...aquelas... Como chama mesmo? Ah! Aranhas.
Vitor fez questão de não me deixar na dúvida por muito tempo:
- Olha Neto, só você pode me ajudar. Lembra-se do seu tio Felício? Aquele que faz serviço funerário com uma perua branca, aquele aposentado da prefeitura. Ele está trabalhando em uma funerária particular, não é?
Faço sinal positivo com a cabeça, começo entender e penso que talvez ele tenha razão, afinal quase ninguém desconfia do óbvio.
- Você conseguiria que seu tio emprestasse aquela perua, alegando minha mudança provisória pra sua casa?
Gosto dessa capacidade que Vitor tem de ir direto ao assunto, ainda que isso tudo me assustasse naquele exato momento. Achei uma loucura, fiquei um bom tempo com os olhos pousados em Vitor afundado na poltrona vermelha, sua expressão era de quem estava doente, a beira da morte, e eu sabia que o remédio estava em minhas mãos. Mas, logo Tio Felício! Meter nessa estória um homem tão religioso, tão simples que nunca saiu dessa nossa cidade de fim de mundo. Eu sabia que era por isso mesmo que Vitor me pedia, Tio Felício não desconfiaria, era inocente,a ponto de acreditar na mudança repentina do meu amigo de infância. É certo que a viuvez de Vitor causaria compaixão, tocaria o coração de meu tio, todavia ainda assim ele poderia descobrir. Senti a sensação que eu costumava ter quando era menino, e estava fazendo “uma arte”, quero dizer quando estava prestes a fazer algo errado, mas fantástico. Nos encontrávamos decididos, e esse era um risco que estávamos dispostos a enfrentar. Ai! Se minha vó soubesse disso! Certamente diria que um absurdo desses só poderia acontecer comigo, e ainda resmungaria que a culpa era da minha mãe por não ter me batizado. Parece incrível, mas eu poderia até imaginar o sermão:
-Uma coisa dessas não pode ser de Deus, eu falo pra você rezar Vítorzinho. Eu rezo pra você todos os dias e você me dá esse desgosto! Roubar morto de cemitério, logo você meu neto!
Entretanto, assim foi feito, e em uma noite de agosto trouxemos uma pequena mudança, quero dizer uma mala, livros, discos e uma série de objetos inúteis que na verdade estavam escondendo o corpo de Julie. Ninguém desconfiou, afinal ele realmente mudou para minha casa. Era uma moradia provisória para Vitor, mas ficaria por tempo indeterminado. Ao chegar em casa, antes de descermos da perua, vi um brilho festivo nos olhos de Vitor. Começava o processo. Meu amigo viera acompanhado de caixas com diversas químicas. Uma pena , mas não pude ajudá-lo a carregar as caixas que exalavam cheiro, porque a alergia não dava um tempo. Espirrava, o nariz escorria, coçava as entranhas. Certamente eu não havia nascido para mexer com formol, éter, benzina ou afins.
Vitor instalou-se no galpão do fundo de casa, comprou na casa de materiais usados quatro banheiras brancas antigas, medindo o comprimento de aproximadamente dois metros cada uma delas. Comprou também um tanque de lavar roupas. Começou então a organizar as químicas. O galpão ficou repleto de químicas, as quatro banheiras e o tanque ficaram dispostos lado a lado, sendo que o tanque ficava ligado ao encanamento do banheiro. Quando pode-se ver o galpão de cima, do alçapão, tem-se a impressão que ele construiu um laboratório fotográfico. A planta baixa do galpão era um laboratório fotográfico fedendo a química. Parecia ser um processo artesanal, porém estava certo que Vitor se serviu de toda tecnologia possível para concretizar o seu sonho.
Não demoraria o início da putrefação no corpo de Julie. Vitor preocupava-se em fazer o processo ser o mais rápido possível. Afinal de contas ele não queria perder nenhuma parte do corpo d amada. O corpo de Julie estava intacto, como o corpo de uma deusa. O traumatismo cerebral não havia deixado seqüelas.
Meu amigo queria embalsamar aquela mulher, ele acreditava em embalsamar no seu sentido etimológico “impregnar de aromas”, introduziria no cadáver substâncias que o livrariam da podridão. É como se ele pudesse conservar o corpo de Julie com a carne gelada e macia, os olhos abertos, o cheiro bom depois do banho. Vitor daria banhos em sua amada, molharia todo o corpo de Julie com perfume francês, “Amor Amor”, seu predileto. O seu cheiro, seu perfume, o odor de rosas guardado em um vidro que ficava guardado no criado mudo, ao lado da cama de Vitor. Um cheiro ficava guardado na gaveta. Era magnífica a influência que o odor poderia causar em alguém, um efeito físico e psicológico resultante de elementos exteriores aos sentidos que produz sensações. O cheiro trazia lembranças, era impressionante o prazer que sentia quando afastava o cabelo de Julie mordendo devagarzinho a sua nuca, sentindo o pescoço exalar um cheiro de mulher. Ainda me lembro que antes de conhecer Julie, meu amigo achava um porre “fazer a mão”, depilação, jóias, perfumes e tal. Principalmente jóias porque são exageradamente caras.. Entretanto a esposa o fez acreditar que não havia problemas nas manias femininas. Julie era cuidadosa, seu jeito de mulher era quase uma pérola: suave, uma preciosidade escondida, jóia verdadeira e rara. Ele adorava quando ela vestia meias ligas, prendia na coxa as rendas escondidas atrás da saia. Naquele instante ela estava nua, singelamente branca.
Vitor passa mais de dez horas sem sair do galpão. A magreza consome pouco a pouco as carnes do seu corpo. Julie ficou por dias afundada hora em uma banheira, hora em outra. Vitor parecia mestre em músculos, nervos, pele e órgãos. Dizia até que era possível manter alguns reflexos no corpo dela. Para mim, honestamente aquilo era um mistério. Eu realmente não entendo nada de químicas; e a nomenclatura médica nunca me agradou muito, apesar de eu sempre ler bulas de remédios . As prescrições nunca deixaram de me impressionar pela quantidade de química que unem, chegando até a me provocar uma certa náusea.
Depois de um mês enclausurado no galpão, meu amigo me chama para ver sua obra-prima. Quando entrei no galpão pude ver, além das banheiras e do tanque, uma poltrona de veludo verde, onde longos cabelos, pretos e reluzentes cobriam as costas do móvel. Lentamente me aproximei de Julie, parecia que ela estava olhando para mim. Não sei mas tive uma sensação de enjôo, segurei o vômito quando percebi que de certo modo ele havia ressuscitado Julie.
Quando me aproximei , senti que o ar ao seu redor era gelado. Aquilo tudo para mim parecia psicose, doença mental da grave. Vitor sentou-se ao lado dela e falou calmamente:
- Neto, maninho, consegui alugar um ateliê na Rua Central. Você já passou em frente dele, não é? Suas esculturas terão lugar lá, posso levá-las amanhã pela manhã quando estiver fazendo minha mudança, se você quiser é claro.
O ar continuava gelado e eu não me sentia agradável com aquele corpo. Era como se Julie estivesse de alguma forma pousada naquele lugar, com os olhos bem vendados como de um falcão pousado no ombro de seu dono. Quem gostaria de ser imortal sem estar vivo?
Saímos do galpão e fomos jantar, quero dizer comer pizza e tomar cerveja, programa típico de Vitor. Eu ainda poderia apostar que ele pediria pizza de calabresa . Enfim, aquela noite bebemos e conversamos até a noite chegar, falávamos como se Julie não existisse mais, como se nada tivesse acontecido. Naquela noite percebi que sua relação com ela seria extremamente particular e a partir de agora nada mais me caberia saber, pelo menos era o que eu pensava.
O ateliê de esculturas na rua Central ficou realmente maravilhoso, as exposições eram muito bem recebidas pelo público em geral, cheguei a me recordar da revista que fazíamos juntos na adolescência. Vitor me levara apenas uma vez para conhecer o porão do ateliê, a casa de Julie, lá havia a escultura do Anjo. Fui com meu amigo buscar a adorável escultura. Quando chegamos naquele cemitério, antes de me deparar com o anjo, havia um homem dourado com as mãos pousadas na testa, como o comandante de um navio, querendo avistar todos que ali chegavam. Fiquei impressionado, pois parecia que aquela escultura tomava conta das demais, ainda assim apanhamos o magnífico Anjo.
Pensei que tudo estivesse encerrado e que o altar que ele havia construído para Julie era inofensivo a todos. Assim os meses foram se passando, Vitor continuava atendendo, em uma clínica particular, e fazendo prosperar o ateliê. Minhas esculturas tiveram reconhecimento público. As exposições iam de vento em polpa , na verdade vivíamos um ótimo momento e os negócios cresciam de forma inesperada.
Mas as mulheres! Sabia que não deveríamos ter funcionárias mulheres. Todavia foi inevitável, principalmente levando-se em conta que quem procurava emprego eram amigas de colégio, inteiramente unidas trabalhando afiadas. Inteligentes e gostosas. Não é difícil imaginar, Martinha e Catarine tomaram as rédeas dos negócios. Catarine era marchand, morena de pele branca com longos cabelos encaracolados e pretos. Era discreta e as curvas de seu corpo eram insinuantes quando suas saias delineavam seu quadril. Já Martinha era uma espécie de produtora executiva. Era ruiva, quente como vulcão incandescente, de cabelos longos, delicada, quase infantil. Martinha usava cada minissaia! Usa até hoje deixando-a com uma sensualidade devastadora.
Apaixonei-me por Martinha. Iniciamos um namoro tão quente quanto os pêlos vermelhos da sua púbis. Tão intenso que eu tinha a impressão que cada encontro valia por um ano vivido antes de conhecê-la. Poucas pessoas teriam coragem de viver uma amor tão intenso quanto Martinha. Eu já havia tido várias namoradas água com açúcar, mas eu gosto mesmo é de sentir meu corpo estremecer, de me apaixonar. Martinha passou a dormir em minha casa todos os dias e nunca mais se foi.
Em um fim de tarde Martinha veio me dizer que tinha uma surpresa para mim, disse que esta noite jantaríamos com um casal de amigos. Ela fez suspense e silenciou. Martinha pegou as chaves e me chamou para a porta de saída. Ela dirigia o carro, repentinamente procura um lugar para estacionar e para em frente a uma pizzaria. Eu sorri e me lembrei de Vitor. Foi como uma premunição, logo que entramos na pizzaria avistei Vitor. Vitor , a garrafa de cerveja e Catarine.
-Catarine? pensei alto sem poder me controlar.
Ela mesma, Catarine abraçada, quase agarrada nos braços de meu amigo. Pareciam um casal de namorados. Bem, eu já havia dito que ele dava sorte com as mulheres. Catarine estava visivelmente apaixonada por Vitor. Desde então vivemos momentos muito bons juntos.

Um dia Martinha veio me dizer que Catarine havia encontrado o diário de Vitor. Catarine havia arrancado uma página do diário que agora estava em minhas mãos:

“Sonho constantemente com Julie, temo estar prejudicando alguém que amo. Essa noite ela apareceu no meu sonho, bela visão que de certo modo me punia, disse bem assim:
- Vitor a única coisa que peço é que você, o homem que amo: Me abandone! Largue meu corpo. Por favor solte minha imagem! O amor não pode ser guardado em uma garrafa, não é uísque, que quanto mais velho melhor. Eu preciso partir! Sei que o amor o conduz a me prender assim. Veja, também amo as imagens. Mas acorda Vitor, é tudo ilusão. O corpo apodrece e eu quero sentir esse processo de putrefação. Não posso me sentir congelada por toda a eternidade. Meu amor, a morte me apanhou muito jovem, no auge de nosso casamento. Não é fácil para mim também. My sweetyheart, meu grande amor você sabe que sempre fui leonina com ascendente em câncer até as últimas consequências. Sempre desejei uma amor fiel que pudesse durar toda a vida, mas toda a morte também? Não é possível. Isso é pior que Carma. Tudo isso é parado como se debater no caixão sem poder respirar, fico me debatendo em um corpo que não se mexe! Você tira minhas roupas, lambe meus seios, mas eu estou gelada! Você não sente?Por Deus, não posso sentir o calor de sua saliva. Não vou negar que o começo desse endeusamento era bom. Mas, amor já não vive mais a casa do meu espírito. Não me prende! Eu preciso sair desse Olimpo que você construiu para mim! Mesmo que a gente continue se amando... Por favor...Me solta , por favor me solta...
O sonho se prolongou na minha mente e tudo ainda está confuso em meu cérebro, o fato é que preciso decidir se devo entregar logo o corpo de Julie a Iemanjá. Até amanhã pela manhã decidirei se será o fim dessa doce ilusão de eternidade. Parece que está perto o fim desse porão desconhecido.”

Quando terminei de ler aquela folha, percebi a parte interna do papel rasgada denunciando ser mais uma folha de um diário cheio de páginas. Fiquei branco, a pressão desceu, senti que poderia desmaiar. Suava e sentia a rinite alérgica nervosa tomando espaço em meu corpo.
Vitor estava apaixonado por Catarine. Ela o amava perdidamente, e isso não era segredo. Martinha chorava pela sua amiga, sabia inconscientemente que Catarine não suportaria tal traição. Traição sexual era muito diferente que se sentir traída por um amor eterno.
O telefone toca, era Catarine. Ela estava desesperada dizendo que estava no ateliê de Vitor e que naquele momento se certificaria de tudo o que havia lido no diário.
Catarine colocou o ateliê de Vitor de cabeça para o ar, até que encontrou o porão. Lá não estava mais o corpo de Julie, entretanto havia resquícios do altar montado, do local onde o homem que ela amava endeusava outra. Uma morta. Uma mulher viva no coração de um fingido que possuía seu corpo todos os dias. Quando ela poderia imaginar que um homem tão carinhoso fosse cometer uma traição tão fétida? Aquilo tudo provocou tamanho asco em Catarine, tamanha apatia; que por alguns minutos ela se sentiu paralisada. Naquele momento havia morrido qualquer amor a própria vida. Agora era só o ódio de ter sido traída.
Enquanto isso, sem imaginar o que lhe aguardava, Vitor cumpria a sua missão. Estava prestes a libertar Julie e recomeçar a vida. Era fim de tarde, o sol estava a pino e o mar reluzia nos olhos, era o dia perfeito para fazer seu lindo ritual de partida. Em um pequeno barquinho ele se despede da amada. Era um quadro de Monet a imagem que se via da beira da praia, o barco lentamente sumia mar adentro. Uma imagem cheia de cores, pontilhados que de perto só se vê um borrào de tintas e de longe uma imagem surpreendente, cheia de sombras, uma pintura inesperada para a ocasiào. Eu tenho uma mania de sempre lembrar de pintores e imagens em situações que me emocionam. Muita luz no último beijo que Vitor daria em Julie. Adeus. Adeus. Na volta para a praia Vitor só pensava em Catarine, pensava que queria ter filhos.
Pobre Catarine, as lágrimas afogavam seus últimos suspiros. Vitor tinha um quarto de descanso no ateliê, onde Catarine e Vitor costumavam ficar. No último andar da casa acabava de acontecer uma tragédia. Martinha e eu entramos no ateliê e avistamos a escada cheia de vidros quebrados. Catarine havia mexido nas caixas de químicas. Não só mexeu como quebrou vários vidros em um acesso de fúria. Não só quebrou os vidros como tomou uma overdose de morfina. A imagem era nostálgica: uma linda mulher morta na cama de meu amigo, melhor amigo.
Eu sabia que ele estava apaixonado por aquela mulher. Depois de Julie, Catarine foi a única a lhe tirar gargalhadas. Ela lhe dava a vida fora das doses homeopáticas.
O velório foi preparado ali mesmo, no quarto. Chegaram parentes, curiosos, jornalistas a fim de relatar a tragédia e os policiais a fim de desvendar o mistério. Vitor chega lentamente, um frio no estômago parecia fazê-lo prever a tragédia. Eu gostaria de abraça-lo, mas era impossível romper a névoa que encobria seu rosto. Chorava como criança. Senti uma dor no âmago quando Vitor beijou Catarine amorosamente e depois foi se afastando como bicho acuado. O barulho de pessoas que havia no velório, no quarto, desapareceu para meus ouvidos. Minutos depois ouvi um estrondo. Era o Anjo. Era Vitor explodindo o anjo com um murro que estilhaçou sua mão, fazendo voar pedaços prateados e vermelho do Anjo, de Vitor. Era a comunhão do Anjo, era o sangue de Vitor escorrendo pelas paredes.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Sra. Boal e Sra Freire


Marc Chagall
Eram duas mulheres na platéia. Elas são divas. Sorrisos largos que exalam vida. Elas são mulheres de verdade. Duas viúvas de dois gênios? Não, duas mulheres que serão eternamente mulheres de seus maridos.
Que lindas essas mulheres!
Que momento mágico vê-las no Teatro Arena, lado a lado. Só mulheres magníficas poderiam ser companheiras de homens geniais.