domingo, 5 de julho de 2009

Monólogo de Ana



dangerous liasons - magritte
"E é inútil procurar encurtar o caminho e querer começar, já sabendo que a voz diz pouco, ja começando por ser despessoal. Pois existe a trajetória, e a trajetória não é apenas um modo de ir. A trajetória somos nós mesmos. Em matéria de viver, nunca se pode chegar antes. A via crucis não é um descaminho, é a passagem única, não se chega senão atrás dela e com ela. A insitência eh o nosso esforco , a desistencia eh o premio. A este so se chega quando se experimentou o poder de construir, e, apesar do gosto de poder, prefere-se a desistência. A desistência tem que ser uma escolha. Desistir é a escolha mais sagrada de uma vida. Desistir é o verdadeiro instante humano. E é só esta a glória própria de minha condição.
A desitência é uma revelacao” clarice lispector
Ana está saindo da porta de um cinema, noite de tempestade. Ana está sozinha e toda molhada á meia luz na avenida paulista. A iluminação é expressionista, bem como as cores de tudo que está em cena. Existe um ar de realidade no ato fantastico da personagem. Ela está de olhos fechados na chuva. Foco em Ana .
Eu tô no escuro do impulso. Eu...tô perdida. Eu tô deslizando pra onde? Tem mais alguém aqui? Espera. Espera eu tô ouvindo. Tem uma voz me chamando pra dentro de mim: tem uma voz me chamando! (Ana pergunta ao público) Voce consegue ouvir? Que merda! Tem uma noite caindo, um sol se pondo, dentro do meu peito. (Ana tira uma foto da bolsa. Era choro nostalgico.) Por que erramos? Por que essa maldita sensação de rejeição? Por que a boca que eu mais quero nunca me beija? Tem alguma mão aqui esta noite que sabe fazer carinho? Quero dizer carinho vindo d' alma? (Ana sente dor no estômago) Tem uma fala que eu ouvi essa noite que tá me dando enjôo. Que merda! Tem gente que fala e que sufoca a gente! Eu quero sair daqui! Quero sair daqui, porra! Por favor ...Me ajuda. Por favor... Eu eu tô presa, no âmago das mentiras que eu invento. Que mentira é essa de amar quem não me ama? Que merda é essa de projetar o meu sonho no outro? Meu D ’us, porque a gente acredita que o sonho pode ser verdade? Á merda com a ilusão ! Eu não vou viver numa realidade de plástico. Ah! Isso não mesmo. Será que tudo isso é... Será que isso é...O que eu tô sentindo é amor? Ou eu nunca senti mais nada depois do Prozac? Será que eu só me enganei esse tempo todo? Será que eu tô delirando? Que merda de lógica tem o delírio? Será que a alucinação é verdade quando a gente acredita nela? (pausa) Perdi a entrada do cinema. Mas, qual é o problema se a sessão já acabou pra mim? (faz a personagem do atendente do cinema): Não tem mais lugares remanescentes, minha senhora. Não adianta chorar. Se quiser vai ter que ficar de fora do assento. Fora do circulo, fora do ar. Fora minha senhora, fora daqui! (Ana volta a si pensativa) Fora daqui? Ei, como eu volto pra mim? Eu quero voltar pra mim! Fora de mim tô na porta do cinema, tô abandonada. Será que de tanto amar aquele ausente eu me perdi? Ai que merda de dor! Tô sentindo uma dor aguda no peito, uma dor de ser. (Ana parece que vai ter um ataque cardíaco) Logo eu que acreditei na saúde, quero dizer na saudade. Logo eu que ja senti meu peito despedaçar em migalhas tantas vezes. (Ana se desespera) Preciso sair desse lugar. Preciso cair fora desse lugar, eu tô sufocada. (Ana não sai do lugar). Ir pra dentro de mim. Eu preciso ir pra dentro de mim!!!!! (ela chora). Eu acreditei tanto. Eu tinha certeza que o intervalo amoroso não era o fim, que era só mais um ato de amor. Só mais um ato que vinha depois do ato passado. Engano. Era fim da sessão. Fim do inteiro engano dessa merda de sentimento verdadeiro. Ah, como eu sou panaca! Ridícula mesmo. (se estapeia) Essa sou eu, amando na porta fechada do cinema. Alguém viu a chave? Cadê a chave? Que fechadura é essa que não abre pra eu passar? (pausa). Essa noite vai ter uma enchente feita de suor que vai inundar a cidade. (Silêncio). Essa noite tem um silêncio profundo. Eu não quero acordar. Mas, eu tô morrendo afogada no meio dessa avenida. Meu ouvido tá molhado, eu não me, te, escuto, não escuto mais, merda! (pausa. Ana revira a bolsa e tira um papel e uma caneta. Rapidamente escreve algo. Um "A- D e u s" é visto pelo público no papel que ela deixa preso no poste da avendida . Ela se move pela primeira vez por inteiro.) Ana fala repetidamente e abaixando a voz diminui até desaparecer, a imagem de Ana vai saindo de foco como se pudesse desaparecer aos olhos nus dos espectadores): Morri de indigestão, eu morri com fome, morri de excesso de água nos olhos. Essa noite eu desisti, chorei, morri. Eu amei e fui toda metamorfose. Essa noite eu me entreguei na revelação do ato de desistir. Essa noite morri. Essa noite desisti.

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