domingo, 27 de dezembro de 2009

Viver – filme de Akira Kurosawa



Viver – filme de Akira Kurosawa


Título original:Ikiru
Título em Português:Viver
Realizado por: Akira Kurosawa
Atores: Takashi Shimura, Shinichi Himori, Miki Odagiri
Data:1952
País de Origem: Japão
Duração:143 min.
Preto e Branco, Som


Acabei de assistir esta obra prima. Tem filmes que são imperdíveis. Este é um deles. "Viver" mostra o valor de viver que um homem só percebe ao saber que vai morrer. O que realmente importa em nosso cotidiano? O que abrange a ação de viver?
No caso desse filme o protagonista é chefe em uma prepatição do serviço público. Quando ele descobre que vai morrer passa a viver. Incrível!
O filme é extraordinariamente dividido entre dois períodos: a mudança na vida do protagonista após descobrir que teria no máximo 6 meses de vida e o velório dele mostrando as transformações que suas ações geraram e mecanizações burocráticas ( burrocracia) dos que viviam ao seu lado.
Como um homem muda tanto em 6 meses? O que teria provocado tal mudança? O primeiro comentário sugere que só poderia ser mulher. Depois de muita discussão chegam ao consenso de que ele sabia que estava com câncer e por isso havia mudado tanto. Todos riem e dizem: “ Assim até eu!” Subitamente um dos participantes do velório se levanta e fala: “E se a gente morrer de repente?” Silêncio. Logo chega o cometário: “Vocês nunca fariam o que esse homem fez!” Silêncio.
E o que fez esse homem nos seis meses que lhe restavam? Viveu. Foi generoso, ajudou os moradores do bairro a terem um parque para as crianças, deixou dinheiro para o filho, transformou sua realidade. E claro também foi jogar fliperama e encher a cara. Sorriu muito. Insistiu em quebrar a burrocracia. Foi ameaçado pelos donos do poder. Mas que importava? O homem não tinha medo de morrer.
No meio do filme tive que atender a campainha. Era um morador de rua me dizendo: “Tô com fome dona, me dá alguma coisa pra eu comer agora? Tô morto de fome.”
Esquentei o macarrão, que certamente iria para o lixo, e dei a comida requentada para o homem. Desaguei um mar salgado e límpido pela desigualdade social. O capitalismo des-ensinou o ser humano a viver.
Cumprimos papéis sociais extremamente egoístas. Vemos pouco mais que nosso umbigo. "Quantos sonhos mesquinhos", pensei, ao ver a fome do homem na minha porta.
Tem o outro. Tem o mundo. E existe um real caos. Como ser artista, médico, engenheiro, político, empresário, lixeiro sem se dar conta dessa realidade?
Até quando esses ridículos habitantes do planeta terra não vão dar valor ao meio ambiente, a humanizaçào, a vida? Uma burrocracia come quase toda a comida existente no mundo. Vejo fome, opressão, devastasão, desigualdade. Avisto o caos e não há como me eximir dessa realidade cruel que o ser humano moderno está engolfado. Muito trabalho a fazer relacionado a humanização do ser humano. Espero que não haja necessidade de estarmos prestes a morrer para começarmos querer viver.
O mundo está pegando fogo e o inferno é aqui. Momento de profundas transformações.
Viver- Ikiru, vale a pena.

Vejam uma bela resenha de Miguel Patrício sobre esse filme:

“Existem filmes inesqueciveis marcados pelo toque no coração, pela humanização pedagógica e pela intemporalidade tanto nos temas, como nas emoções que nos fornecem. Ikiru é, na minha opinião, o filme que representa tudo isso melhor. É um dos filmes mais belos e perfeitos de Kurosawa e do mundo. Encerra em si toda a condição humana metendo-a na boca de um velho doente de câncer com apenas seis meses de vida que irá descobrir nesse pouco tempo o significado de"viver". Takashi Shimura é fenomenal, sidera pela sua prestação - na minha opinião a mais completa e terna que já presenciei -, deixa-nos de boca aberta perante o sofrimento psicológico que vive, pela saudade do tempo que passou e das vivências que terá de deixar para trás, quando partir defenitivamente. Ikiru inicia-se com um raio-x do estômago de Kanji Watanabe, um velho chefe de secção das obras públicas, ao qual o narrador insurge dizendo que Kanji sofre de um câncer do estômago, mas ainda não o sabe. Ao mesmo tempo, ouvem-se vozes - tal como um coro grego - de queixumes de senhoras pedindo a construção de um parque infantil numa zona cheia de lama e lixo. Kanji é apático, oco, vazio, vive numa anestesia e surdez total procurando trabalhar viciadamente - como quase toda a população japonesa. Assim, as senhoras procurando resolver a situação destinada às obras públicas entram numa rede enorme burocrática atrasada e desorganizada levando à desistência de todo o esforço feito para a proposta de uma idéia. No escritório de Kanji ouve-se também uma piada lida por Toyo, uma empregada sua. Dizia ela rindo como uma criança:"Nunca tiraste um dia de folga?", "Não." "Porquê? És indespensável no teu trabalho?", "Não, Eu não quero que eles descobram o que conseguem fazer sem mim." Kanji não percebe (ou nem ouve) e volta ao seu usual trabalho monótono de assinar papéis sem os ler e arquivar projectos esquecidos na gaveta poeirenta.Eis que Kanji se informa do seu estado de saúde - note-se a cena do doente contando a Kanji os truques e mentiras dos médicos para não assustarem os pacientes que pouco tempo podem viver. A cena do apercebimento do reduzido tempo restante de vida da personagem principal, logo no ínicio, é só por ela tocante e assustadoramente constrangedora. Watanabe começa-se a tornar num vagabundo, num velho transeunte solitário com o seu pesado fardo: saber quanto tempo lhe resta para viver. A falta de comunicação com o seu filho - por culpa do pai(?) - torna a compaixão pela personagem principal cada vez mais fácil e existente. Kanji ouve sem querer uma conversa do filho e da esposa em que esta comenta que com a pensão da morte do velho pai, poderiam construír uma nova casa. A frieza do filho - que numa remeniscência de Watanabe, não queria deixar o carro fúnebre que levava a sua mãe - é a demonstração de um homem dos negócios e do dinheiro. Frio, como era o pai, vendo as emoções e as pessoas como se fossem números, é óbvio que quando o pai lhe quer contar o que tem, ele fecha a porta do seu quarto e pede para este trancar a porta principal.Por cima das honrarias do seu trabalho e da alienação consequente do dinheiro e das economias, é sozinho que Kanji chora descontroladamente por debaixo da cama o desconcerto com o mundo e com o seu passado mumificado.O coração do nosso velhinho dilacera-se entre a auto-destruição e o questionamento da sua felicidade. Ele primeiro, desesperado, leva as suas economias e gasta-as de forma hedonista em saké, em mulheres, em clubs nocturnos - e note-se como estes são o lugar das massas, estando filmados de forma furiosa e abarrotada como uma prisão -, acompanhado pelo companheiro vestido de negro, o novelista mefistofélico. Já no Fausto de Goethe, o diabo comprava a alma do doutor idoso; em Ikiru, Kanji vende a sua alma pelo deleite e pelo prazer descabido, desastrado e suícida. No final das sequências magnificamente filmadas da boémia nocturna, é o ar enjoado e as lágrimas desesperadas do principal, entrecruzando com as cantigas melancólicas das mulheres da vida, que nos fornecem a segurança que todos aqueles ambientes americanizados - diga-se - são pouco saudáveis, e refiro-me, pois, a essa metáfora que é estar-se doente. Depois de experenciada a descida aos infernos da vulgaridade corrupta da cidade negra, Kanji procura, como um cego, tacteando pelos passeios por entre as crianças o significado de viver. Aí cruza-se com a sua empregada Toyo, a mesma que lera a piada no princípio, cujo significado é uma das várias mensagens do filme. Toyo é a criança, a doce rapariga brincalhona, tímida e cristalina que desperta em Kanji o desejo de a fazer feliz. Conquista-se um pouco de felicidade, nestas cenas tão amáveis e que surgem após a tempestade. A cena do café, uma das mais profundas e maduras da história do cinema, é desenrolada pela descoberta da felicidade. Kanji grita e desce as escadas da vida, enquanto na mesa ao lado se cantam os parabéns. Descobre-se que a nossa felicidade reside no facto de fazermos felizes os outros.Só, mas determinado, surge um novo homem para além do medo de morrer. Watanabe volta ao trabalho e luta contra a burocracia do sistema do pós-guerra (e actual?), escrevendo um testamento pela sua nova obra - o parque de crianças pedido no princípio.E, de um momento para o outro, somos informados da morte de Kanji pelo narrador. Situamo-nos no seu funeral, e as opiniões dos presentes surgem num espectáculo de remeniscências a qual é finalizada por um polícia que conta a sua verdadeira morte - desmascarando assim as histórias circuladas pelos seus patrões. Por entre o branco da tempestade de neve e os corredores de ferro, sobrevêm poesia visual quando se observa Kanji, sorrindo e chorando, cantando roucamente os seguintes versos:

A vida é breve.
Apaixona-te,doce senhora,
Enquanto os teus lábios ainda estão vermelhos,
E antes que tenhas frio.
Porque não existe nenhum amanhã...


Ninguém saí desta cena indiferente: a montagem, o trabalho de câmara, a representação e a música, todos eles (inter)agem no espectador como uma explosão metafórica desta vez da morte do amável senhor Watanabe. A homenagem ao grande homem é glorificada pelo parque onde as crianças são felizes e podem brincar - pois tal como em Yume ou em Hachi-gatsu no kyôshikyoku - a perda da infantilidade, da paz e do sorriso conduzem à alienação, à escolha do fácil e do imediato, da economia e da guerra, logo na destruição do que é humano."

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