segunda-feira, 4 de julho de 2011

Um sopro de vida




Trecho de "Um sopro de vida" 

Adaptação livre do romance de Clarisse Lispector.
 
Para a querida amiga Ângela.
 
Com mudanças... Cada vez que leio algo muda.

Personagens: Ângela
 
Esolda
 

As duas se entrelaçam como mãe e filha. Esolda canta uma bela canção. Elas dividem a mesma cama. Abraçam-se e se repelem até que Ângela cai da cama. 

Ângela: Todo dia eu acordo e tenho que ver sua cara. Quer saber, nem sei se gosto da sua cara. 

Esolda: Pra que saber? Tem coisa que a gente não entende mesmo. Quando eu vejo alguma coisa que eu não entendo, eu sinto uma vertigem mais doce do que bolo de chocolate. 

Ângela: Bolo de chocolate? 

Esolda: Na verdade eu quero dizer que eu não entendo nada. Finjo ser uma pessoa, mas na verdade não sou nada. 

Ângela: Sonhei essa noite. 

Esolda: O que você sonhou? (Silêncio) Conta! Vai conta! 

Ângela: Sonhei que eu era um polídrico de sete pontas, divididas em sete partes iguais, dentro de um círculo. Mas eu não cabia nele! Tive de ficar pra fora do círculo. Sempre fico de fora. Por acaso é culpa minha se eu não sei quem é? Deveria ao menos saber para onde vou... 

Esolda (corta Ângela com animação): Vamos brincar de casinha? 

Ângela: Eu vou prepara a comidinha. 

Esolda: Então eu pego o matinho e o arrozinho. 

Ângela: Vem logo senão a filhinha vai chorar! 

Elas brincam de "casinha". 

Ângela: O que você vai fazer agora? 

Esolda: Vou cuidar da vida e você? 

Ângela: Eu tô me sentindo perdida, como se eu estivesse no Ministério da Fazenda. 

Brincam de cabra cega, pega-pega. No auge da brincadeira Ângela do sorriso chega ao choro e pede ao publico. 

Ângela: Pelo amor de Deus chora! Por favor, chora! Da um grito vermelho. Vai! Da um grito! 

Silêncio. 

Esolda: Você acha que eu sou pura? 

Ângela: Pra mim a pureza é tão violenta quanto á cor branca. 

Esolda pega um vestido branco e baila com ele. Dá o vestido a Ângela, que continua bailando. Esolda coloca uma calca jeans e uma blusa velha. Dança em ritmo oposto ao de Ângela. Subitamente as duas param de dançar. Silêncio. Esolda olhando-se em um espelho feito só de moldura examina sua roupagem. 

Esolda: Eu me sinto bem vestindo molambos. 

Ângela: Eu gosto de tudo que é simples. Por exemplo, hoje no café da manhã só comi frutas e ovos. Não quero o sangue rico da carne. Quero comer apenas o que nasce sem dor. O que brota nu como uva. 

Esolda: Você diz cada besteira. 

Ângela: A pureza, eu quero a pureza. 

Esolda: Tenho uma coisa pra te falar. 

Ângela: O que é? 

Esolda: Essa noite eu não vou dormir com ninguém. Sabe por quê? Dormir com alguém é luxúria. Fazer dois de mim! Quero ser apenas um. O número um não pode ser dividido por nenhum outro e... 

Ângela tenta beijar Esolda. Esolda a repele. 

Esolda: Fala sério: quem sou eu? 

Ângela: Você é o nada. 

Esolda: Quem sou eu? 

Ângela: Ah, sei lá porra. Talvez Strauss, James Joice, Joana D’arc, Maite Proênca. Sei lá! 

Esolda: Ei, Ângela, presta atenção: eu já sei. Sou um nome. 

Ângela: Um nome? 

Esolda: Ah, um nome. Claro, todo mundo tem um nome. 

Ângela: Só um nome? 

Esolda: Não. Sabe o que eu sou? Sou uma vertigem. Um trovão. 

Ângela: Não entendo. 

Esolda: Presta atenção, toda idéia é inventada. E provavelmente alguém já inventou antes de você. Você acha que eu vou me responsabilizar por alguma idéia? Nem morta. Eu quero é a pureza. 

Ângela: Que saber de uma coisa? Eu não sei de nada. Eu só sei ir vivendo como o meu cachorro. 

Ângela ajoelha-se para rezar. Esolda acaricia um cão imaginário e Ângela continua rezando. 

Ângela: Desde que cheguei aqui minha vida é um desastre. Uma cama vazia. Tem um cachorro aqui dentro latindo. Só um latido. Vou latir pra Deus. 

Esolda: Quero sair daqui! Mas, eu tenho medo. E se... E se eu encontrar algum morto? 

Ângela (reza em latim): Reic meterna domis domis lucis petua lucis tes recas cante part ame. O lago azul da eternidade nao pega fogo. Eu eh que me inceneraria ate os ossos. Eu quero mesmo é viver um e o pó. Que assim seja. Amém. 

Esolda: E se eu encontrar qualquer coisa que atrapalhe, eu vou protestar! Vou protestar como um cão que late numa eterna seção de cadastro! Hum! Bem que o computador poderia me ajudar. Que você acha de viver assim: você e seu computador e só? Agora existe computador para todos os gostos. Funciona e como funciona! Já encontrei um grande amor impossível no Tagged. Tem gente que até casa e tem filhos pela internet. Verdade! Eu ouvi dizer cada estória de arrepiar os cabelos. Sabe me distraio tanto no computador, que até me esqueço de tomar meus remédios. Navegar na net é como se a gente pudesse ver um milhão de pessoas ao mesmo tempo, todos em uma única tela. Blog entra, email sai, uma loucura! Um dia me apaixonei perdidamente por um inglês que se chamava... Ah! A merda essas máquinas. Eu tô procurando o meu vazio. Você viu? 

Esolda está procurando algo muito importante para ela. Ângela ajuda a procurar. 

Ângela: Pode ser aquele? 

Esolda: Não tô vendo. 

Ângela: Talvez o seu vazio tenha saído pra passear, foi dar uma voltinha e... 

Esolda: Que merda! Pra que guardar tanta tranqueira? Assim eu nunca vou conseguir encontrar meu vazio. 

Esolda está desesperada. 

Ângela: Calma. Vai, se acalma! A gente acha. 

Isola: Nunca acho nada! Que merda! Já faz tempo que eu tento achar uma solução. Mas... eu não encontro. 

Ângela: Que solução, minha filha? 

Esolda: A solução pros meus problemas. Penso noite e dia, dia e noite e não encontro. Meu Deus! Só pode ser meu fim! Você acha que chegou o fim? 

Ângela: Você tá louca? Vai ser o fim se essa cuca cheia de pensamentos fundir de tanto pensar! Calma! 

Esolda: Você sabe onde ela se meteu? 

Ângela: Ela quem? 

Esolda: A solução! 

Ângela: Quem sabe ela não tá dentro da tua calça? 

Esolda: Onde? 

Ângela: No meio da tua bunda. 

Esolda: No meio da minha bunda...(Procura em sua bunda e subitamente percebe o absurdo dessa ação) No meio da minha bunda? Para de dizer bobagem! Você só me deixa mais confusa. Give me a break. 

Continuam a procurar a solução de seus problemas em todos os lugares, de todas as maneiras. Toca o relógio. 

Ângela: Em que ano estamos? Que dia que é hoje? 

Esolda: E eu é que vou saber? 

Ângela: Agora já é passado? 

Esolda: Talvez. 

Ângela: E o presente já é futuro? 

Esolda: Olha! 

Ângela: O que? 

Esolda: Acho que eu encontrei. 

Ângela: Encontrou o que? 

Esolda: A solução! Procurei em todos os lugares, só tinha me esquecido de um. 

Ângela: Qual? 

Esolda: Dentro desta caixa. 

Ângela mostra uma caixa invisível 

Ângela: Eu não tô vendo caixa nenhuma. 

Esolda: Não acredito! Olha aqui na minha mão: uma caixa. 

Ângela: Ah, é? 

Esolda: Olha, ela tem uma fechadura. Mas... Eu não tenho a chave! 
Você sabe onde tá a chave dessa caixa?
 

Ângela: Talvez seja essa. 

Dá uma chave invisível para Esolda 

Esolda: Qual? 

Ângela: Essa aqui na minha mão. 

Esolda: Mas eu não vejo nada. 

Ângela: Então, honey, vai ser impossível você solucionar seus problemas! Ou você compra uns óculos tridimensionais, ou então aprende a ver com os ouvidos e ouvir com os olhos, por que assim não da! Sei lá. Tenta imaginar. É isso! Você precisa imaginar e acreditar na sua imaginação. Você imagina que tal coisa está em tal lugar e então mais hora menos hora, surpresa: a coisa aparece no lugar que você imaginou. 

Esolda: Não, não. Eu só acredito naquilo que vejo. 

Ângela: Então, por que é que você acredita nos seus problemas? 

Esolda: Mas, isso é diferente! Afinal de contas são os “meus problemas”. 

Ângela: Que diferença isso faz? Como se você conseguisse ver de frente os seus problemas! Fé, Esolda. Fé. Você precisa de muita fé.
Esolda e Ângela voltam pra cama e cantam uma canção de ninar. Fade out.

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