sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Direito a dentista


Direito a dentista: uma ação social concreta

“O teatro deve ser um ensaio para a ação na vida real, e não um fim em si mesmo.” Augusto Boal
“Não basta interpretar a realidade é necessário transformá-la” Karl Marx

Ação social concreta continuada está no topo da árvore do Teatro do Oprimido. Nas raízes dessa árvore: ética, estética e solidariedade. Almejamos fazer teatro como política. O "se ver agindo" que o teatro nos proporciona pode revolucionar ações e posturas perante a sociedade. Vamos atuar de forma consciente no palco da vida?
Atualmente participo de um projeto na área de saúde mental, que é uma parceria do Centro de Teatro do Oprimido e do Ministério da Saúde. Trabalho como curinga do Pólo do Litoral Paulista. São muitas as estórias e as transformações, pessoais e coletivas, que observamos durante nosso trabalho. Visito 13 grupos em equipamentos de saúde mental do litoral paulista observando, trabalhando junto com os profissionais da saúde, os usuários de saúde mental, os familiares e a comunidade. O objetivo é introduzir o Teatro do Oprimido como política pública. Os multiplicadores de TO neste projeto são psicólogos, terapeutas, assistentes sociais, enfermeiras, fonoaudiólogos. Uma das coisas que nos unem é que queremos que o ser humano não seja trancado em hospitais e nossa arma é o Teatro do Oprimido. Foucault em seu livro sobre a história da loucura nos faz perceber que a loucura não é uma entidade física, mas sim construída social, medicamente e politicamente.
Objetivamos que o teatro possa ser utilizado como linguagem e como voz para a comunicação daqueles que são privados do seu o direito de falar. No caso da Saúde Mental a falta de voz se deve muitas vezes a falta de autonomia dos usuários para buscar seus direitos; estes não garantidos de forma satisfatória. Uma dentição saudável, por exemplo, poderia melhorar as possibilidades de articulação verbal, favorecer a comunicação e conseqüentemente criar maior possibilidade de autonomia. O direito a cidadania, a saúde e aos direitos humanos são essenciais a todos, assim pensamos e agimos .O teatro que realizamos não faz milagre. Entretanto, provoca questionamentos e profundas mudanças pessoais e coletivas.
Será que são nossos olhos que ainda vêem os usuários de saúde mental dentro de uma moldura antiga? Será a loucura apenas falta de habilidade de se comunicar? Será ela isolamento, descontrole, delírio, alucinação, embotamento das emoções? Muitos dos pacientes são altamente medicados, logo seria ridículo dizer que não há nenhuma diferença em seus movimentos motores. É real também a dificuldade de relacionamento, porém cada um da sua maneira interage. A interação entre eles é feita no Registro do Pensamento Sensível. Existe a dificuldade do trabalho em grupo, porém se são estimulados eles podem até fazer exercícios complexos que exigem concentração. Será possível ver todo ser humano com dignidade? Não só é possível: é necessário.
Falaremos de um dia de oficina no SELAB (Serviço de Lar Abrigo/ Residência Terapêutica para portadores de doenças mentais), em Santos. Trata-se de uma casa de saúde, de portões fechados, onde moram usuários da saúde mental que não possuem famílias, que tem casos severos. Muitos são remanescentes do antigo Hospital Psiquiátrico Anchieta1. No Selab e todos os equipamentos de saúde que atuamos procura-se humanizar o tratamento psiquiátrico. Há vários profissionais que trabalham em equipe para garantir uma vida sem camisa de força, sem choques elétricos, sem tortura.
Neste dia de oficina de TO, no SELAB, os usuários estavam espalhados pelos cantos e cômodos da casa. Quando chamamos para o teatro aproximadamente vinte se reuniram para a Oficina de TO.O exercício “Zip, Zap” foi feito em roda. Os internos atentos passavam os comandos do jogo em círculo. Por vezes trocavam o zip pelo zap e por outras acertavam: o que acontece na maioria dos grupos que trabalhamos quando aplicamos o jogo pela primeira vez; ou seja todos nós temos dificuldade de concentração e assimilação das regras de um jogo. Imaginem quem toma Aldol, Diazepam, Acineto e outros tantos remédios fortíssimos?
Após o exercício, tentávamos criar uma cena de Teatro Fórum. Porém, havia muita dificuldade em compreender o que seria “uma cena” o que tornava a idéia de construção da cena de fórum impossível. Lembrei-me de Paulo Freire comentando sobre a angústia de planejar e saber que tudo pode ser transformado; se for em pró do diálogo, do conteúdo proposto com a realidade dos participantes. Naquele momento decidimos mudar o curso da oficina e propusemos uma improvisação baseada no Santa Tereza2 ; os personagens eram paciente e médico. Apareceram devaneios em alguns grupos, por exemplo, ao ser perguntado quem faz o médico e quem faz o paciente Marco Antônio responde: sou o acomodado. E Zé Luís completa: e eu sou o preguiçoso. Seria mesmo um devaneio? Ou será possível que eles foram chamados tantas vezes de acomodados e preguiçosos que eles se sentem a vontade para fazer esses personagens?
Em uma outra dupla surgiu a improvisação entre dentista e paciente:

Paciente: Doutor eu preciso arrumar meus dentes. Podre assim ninguém vai querer me beijar!
Doutor: Não! Não dá, é muito caro.
Paciente: Mas eu preciso, preciso arrumar os dentes!
O paciente ao dizer isso mostra os dentes podres ao doutor. O ator que faz o doutor vira-se pra mim mostrando seus tocos de dentes podres e diz:
Doutor que se transforma em paciente: Eu também tô com o dente podre, olha aqui os meus dentes! Eu também quero ir ao dentista!
Quando percebi estava criado um grande círculo em volta de nós, como se estivéssemos atuando em arena. Logo, aparece uma outra usuária fazendo uma Doutora e leva os dois pacientes para o seu consultório imaginário.
Médica: Eu posso tratar seus dentes, só que é muito caro.
Paciente: Então não dá.
Outro paciente: Mas, isso aqui não é um lugar público?
Dentista: Não aqui é meu consultório particular. De graça não tem jeito!

Perguntei se eles queriam ir ao dentista e quase todos levantaram as mãos e mostraram os dentes podres. Como eu nunca havia reparado naqueles dentes podres? Dificuldades de falar: rebaixamento cognitivo, longos anos de tratamento, uso de medicamentos controlados, quadros psiquiátricos associados a quadros neurológicos, perdas advindas dos períodos de crise, falta de dentes. Isso advém da dificuldade de chegar até os recursos (por falta de autonomia) e acessar meios de cidadania.
Ação social concreta continuada necessária: dentista para os usuários internos da residência terapêutica. Eles tem o direito de comer, de falar, de ter saúde! Os usuários ganham benefício mensal e também moram em uma casa de responsabilidade pública. Logo, a responsabilidade pela saúde bucal dessas pessoas não seria também pública? O direito de ser amado, cuidado e respeitado também devem ser concedidos aos que são diferentes. Afinal quem é normal? Certamente estamos falando de pessoas com uma sensibilidade aguçada. Isso deveria excluir alguém do meio social ? O teatro começaria após o teatro que realizamos na oficina.
A coordenadora Sandra Murat junto aos seus funcionários providenciaram a ida ao dentista dos pacientes internos do Selab. O psicólogo e multiplicador de TO Vlamir, informa que x pacientes foram atendidos pelo CEU, após as revindicações ocorridas . Mudanças concretas aconteceram após a oficina através da mobilização tanto da Coordenadoria de Saúde Mental como dos funcionários de Santos. Em parceria com a política púbica local e os cidadãos vamos construindo transformações reais na sociedade.
1Primeiro Hospital Psiquiátrico em Santos fechado pela Reforma Psiquiátrica
2 Técnica de Teatro do Oprimido que trabalha improvisação e criação de personagem